quarta-feira, 28 de julho de 2010

Coração crescido (conto)

Acordei com a vontade louca de comer milho quente. Daquele que se vende em panelão d’água fervente sobre o carrinho de geladeira na esquina de casa. Água de pelar porco ou despenar galinha, como fazia minha mãe nos dias de festa.

Casamento, batizado, primeira comunhão padre Alfredo aparecia, rezava missa na capela da localidade. Minha mãe, tias, primas, parentes e amigas se reuniam no terreiro e não sobrava bicho de ovo.

Antes da missa, padre Alfredo conversava com a macharada. Queria ouvi-los em confissão. No sertão de meu Deus, macho que é macho não se confessa, padre, dizia meu pai. Vai umazinha aí? Depois de umazinhas, o sacerdote concordava com meu pai e perdoava os pecados dos homens. Um pai-nosso, um pelo-sinal e pronto. 

Com as mulheres era diferente. Ouvia-as todas, sobretudo as em idade de casar. Se os homens eram sedentos de cachaça, padre Alfredo era sedento de pecados femininos. Para cada uma, três ou quatro rosários de penitência.

Quando toda fuzarca terminava e padre Alfredo se ia, a macharada ficava inventando histórias. Glorinha vai casar de rosa, viu! Dizia meu pai, rindo-se da filha do João Grandão, o magarefe. Tudo era levado na troça. Os homens riam, batiam nas costas do outros e se despediam, que já era tarde e logo o sol abriria o olho.

Com o tempo, os mais velhos foram morrendo. Meu pai foi dos primeiros. Adormeceu e não acordou. Padre Alfredo não chegou para sepultar a todos. Fora encontrá-los do outro lado onde não precisava confessá-los e onde não havia as umazinhas.

Minha mãe ficou doente. Primeiro veio o mal dos ossos. Os músculos enfraqueceram. A pele das pernas rachou. As feridas vieram e nunca sararam. O coração ficou crescido. O médico não lhe dera muito tempo.

O médico novo na localidade era pastor batista. Crente dos tempos do “Aleluia! Carne no prato e farinha na cuia”, como gritavam em forma de chacota os contrários à fé protestante. O doutor tirou o jaleco, vestiu o paletó e orou sobre minha mãe.

Ainda assim, esperava-se a morte da velha. Porém, veio a morte e levou minha irmã Rebeca. Naquela noite a indesejada queria carne nova e poupou minha mãe. Assim como meu pai, Rebeca adormeceu e não acordou.

A velha aguentou tudo. Sobreviveu para enterrar a filha quando todos esperavam o dia de jogar-lhe terra na cara. Depois foi meu filho. Tonteei. Um policial não soube a distância entre a cabeça do carona da moto e os pneus do veículo.

Ao delegado contou que não atirou pra matar. A bala saiu do cano do revólver direto pra cabeça, doutor. Foi acidental... Minutos antes de morrer, meu filho me disse: quero comer milho. Íamos os dois na moto...

Voltei do meu tempo de infância. Agora sei de onde vem o meu desejo louco de comer milho cozido e quente, que já não é o mesmo dos meus tempos de menino, quando o natural da vida era os filhos sepultarem os pais e não o contrário.

Lá fora, sentada em sua cadeira, minha mãe olha a rua. Uma frase foge do seu pensamento. “Já vi tanta gente passar nesta estrada”. A velha fizera o coração crescer para suportar tanta dor, tanta violência. Ela pressentira que os tempos estavam mudando e mais do que estufar o peito, aumentou o coração.

Minha mãe, com seu coração crescido, nunca imaginou que viveria tanto para ver os mais novos irem antes dela. Ela que já não anda, que não sai de casa, que só vê a rua de longe e que, por isso mesmo, não pode encontrar-se com uma bala perdida, acidental que seja, para tirar-lhe a vida como se morre nestes tempos.

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